Merchandising na TV: Vale Tudo para vender seu produto?

Merchandising na TV

Pela segunda vez na história da TV brasileira, o público parou em volta da telinha e debateu sobre um único assunto: quem matou Odete Roitman? Essa foi a pergunta central de Vale Tudo, novela original de 1988 cujo remake de 2025 também gozou de grande sucesso, sobretudo, no que diz respeito a engajamento digital. E quem soube aproveitar isso muito bem foi o mercado publicitário. Além das inserções nos intervalos comerciais, que por si só já renderam um faturamento milionário para a Rede Globo, Vale Tudo foi um case emblemático de merchandising na TV.

Se você cresceu nos anos 90 e foi exposto à duvidosa programação vespertina da TV brasileira, certamente vai se lembrar de marcas como TopTherm, TekPix e Bamerindus. Normalmente, um apresentador ou apresentadora interrompia o desenrolar do seu programa para apresentar os benefícios imperdíveis de um produto — muitas vezes acompanhado de um representante da marca, que sabia demonstrar aquele belíssimo artefato ou serviço como ninguém.

Com o tempo, esse formato “telecurso publicitário” foi perdendo espaço. As novelas e séries começaram a incorporar os produtos de maneira mais orgânica, e é justamente aí que o remake de Vale Tudo reina soberano. A Globo transformou o merchandising em narrativa, e o resultado foi uma avalanche de mais de 90 ações comerciais, envolvendo mais de 20 marcas diferentes. É praticamente uma inserção a cada dois capítulos.

Uma agência fictícia com clientes de verdade 

Boa parte das inserções aconteceu através da agência Tomorrow: uma excelente sacada para justificar, dentro da trama, o aparecimento de campanhas publicitárias reais. Assim, a linha que separa ficção e publicidade quase (quase!) desapareceu.

A Electrolux, por exemplo, virou um case dentro do próprio capítulo. A marca apresentou sua nova campanha na forma de “break contextualizado”: um intervalo exclusivo entre duas cenas que faziam referência à própria propaganda. A ação foi assim: Solange (Alice Wegmann) e Sardinha (Lucas Leto) estão na Tomorrow usando uma air fryer e uma cafeteira Electrolux. Então, lembram-se de que a campanha que eles criaram para a marca irá ao ar em instantes. Eles correm até uma TV e apertam um botão no controle remoto. Entra a chamada para o break da novela, e o primeiro comercial é — você acertou — a campanha da Electrolux. Na volta do break, Solange e Sardinha desligam a TV e comentam como a campanha ficou linda e, de quebra, dão o discurso de marca.

Já a BYD, montadora chinesa de veículos elétricos, colocou a embaixadora da marca, Marina Ruy Barbosa, em uma cena que misturava bastidores e realidade. A atriz participava da gravação de um comercial da marca dentro da novela, e o mesmo filme foi exibido no intervalo seguinte, fora da trama. A Tomorrow, nesse caso, funcionou como um espelho da própria Globo: um espaço de convergência entre o entretenimento e os bastidores da publicidade.

Realidade e ficção se misturam na gravação de um comercial real dentro da agência fictícia – Foto: Novela Vale Tudo, em 17/06/25, via Marca Mais

Ousadia criativa e militância nacional

Outra inserção — desta vez fora da Tomorrow — que agradou o público foi a apresentação dos produtos da linha Botik, de O Boticário. Na cena, Celina (Malu Galli) está fazendo sua rotina de skin care quando Odete (Débora Bloch) chega e questiona se os produtos usados pela irmã são franceses. Celina, então, dá detalhes da linha e diz que os produtos são nacionais, “feitos para peles brasileiras” e que não ficam atrás das marcas francesas que a irmã usa. Odete, é claro, esnoba a “militância” de Celina dizendo que prefere continuar usando seus produtos franceses.

A ação, por si só, já chama a atenção por incluir uma personagem que deprecia o produto, mas a sacada fica ainda melhor com o break que entra em seguida: um comercial em que Débora Bloch afirma que Odete Roitman pode até não usar o produto, mas ela, Débora, sim, e é por isso que pode emprestar sua bela pele à vilã.  

@gshow Contra fatos não há argumentos, né? Se Odete Roitman brilha na novela, é porque a rotina de skincare da Debora Bloch tem a performance de Botik do @O Boticário ✨ Ser chique de verdade é saber escolher os produtos certos pra cuidar da pele, como os séruns Ácido Hialurônico e Vitamina C que têm resultados visíveis e comprovados. 💚 Quem aí amou ver a Debora dando esse fecho na Odete? 😅 #RotinaBotik #Publicidade ♬ som original – gshow

O Boticário brinca com a ficção e a realidade em ação ousada – Vídeo: Reprodução TikTok

OMO e o limite do orgânico 

Um dos exemplos mais emblemáticos talvez tenha sido o de OMO Ciclo Rápido, protagonizado por Usain Bolt. O velocista jamaicano apareceu em um quiosque à beira-mar, interagindo com personagens da novela e promovendo o novo sabão líquido, que lava em 15 minutos. A conexão era literal: o homem mais rápido do mundo e o sabão mais rápido do mercado.

Mas a aparição de Bolt dividiu opiniões. Se por um lado alguns acharam uma boa sacada a interação da lenda das pistas com César (Cauã Reymond) e Olavinho (Ricardo Teodoro) — que “por acaso” corriam na praia na hora da ação —, outros viram ali um exagero, com o merchandising deixando de ser contexto para se tornar protagonista.

Ação real de OMO invade a dramaturgia com estrela do atletismo – Foto: Dilson Sivla/Agnews

E essa não foi a única inserção controversa de OMO na novela. Em outro momento, Solange pega um cesto de roupas e avisa Afonso (Humberto Carrão) — em tratamento contra um câncer — que “em quinze minutinhos estará tudo limpo”, ao que ele responde: “e com aquele cheirinho gostoso?” Tudo isso, é claro, com o produto em destaque no cesto de roupa suja.

É justamente esse o ponto central da discussão: até que ponto a publicidade pode invadir o entretenimento sem comprometer a experiência de quem está assistindo?

Quando o brilho do logo ofusca a narrativa 

O remake de Vale Tudo se tornou a novela mais comercializada da história da Globo. O faturamento foi altíssimo, mas junto com os recordes vieram também as críticas — e os memes.

Entre o bilionário Afonso animado com a possibilidade de trocar a cor da tinta Coral sem custo, César pedindo um Zé Delivery no Copacabana Palace e um anúncio do Prime Big Deal Days da Amazon em meio a uma conversa sobre coxinhas, muitos capítulos tiveram um ar de “O Show de Truman” (1998).

Nas redes sociais, espectadores chamaram Vale Tudo de “Vale Publi” e inundaram a internet com memes e paródias hilárias da novela, o que, ironicamente, ajudou a aumentar ainda mais popularidade do remake.

Animação do artista Petit Abel satiriza inserções de publicidade em Vale Tudo – Vídeo: Reprodução Instagram

Equilíbrio entre atenção e saturação 

O sucesso comercial de Vale Tudo tem um mérito inegável: conseguiu transformar o merchandising na TV em pauta cultural. Cada nova aparição de marca era comentada, debatida e virava meme, o que, no fim das contas, também é publicidade.

Mas o fenômeno acende um alerta. Na era da “economia da atenção”, se tudo é marca, nada é personagem. Esse equilíbrio delicado entre vender e contar é o que separa o bom branded content do simples comercial travestido de roteiro.

Vale Tudo foi um laboratório que mostrou que o público pode tolerar marcas dentro da narrativa, desde que elas não tomem o lugar da história. O desafio, daqui pra frente, é entender o limite da integração: quando a presença comercial soma e quando ela interrompe. Porque para o público nem sempre vale tudo. 😉

Entre ficção e publicidade: um futuro híbrido 

As novelas sempre foram um espelho do Brasil, e talvez este seja o reflexo mais atual de todos: vivemos em uma época em que a fronteira entre conteúdo e anúncio se tornou fluida. Isso pode ser fantástico e gerar experiências mais criativas, mas também impõe uma responsabilidade maior a roteiristas, diretores, marcas e agências. Afinal, o público de hoje não só consome histórias, mas também comenta, compara, julga e satiriza cada aparição com o olhar crítico de quem sabe exatamente o que está vendo — e tudo em tempo real.

A pergunta que fica, além de quem matou Odete Roitman, é: será que assim como Vale Tudo de 1988 marcou história da TV por sua qualidade dramatúrgica, Vale Tudo de 2025 vai cravar seu lugar na memória dos espectadores como um grande comercial em forma de novela?

Posts relacionados