IA no audiovisual: a nova aliança

Quantas vezes você ouviu falar sobre inteligência artificial esta semana? Não importa se você está lendo isso numa segunda-feira ou num sábado: esse assunto certamente surgiu na sua rotina mais do que um par de vezes. Entre pseudo-coaches revolucionários garantindo que a IA pode resolver todas as suas “dores” e teorias apocalípticas afirmando que a IA vai acabar com os empregos e se revoltar contra os humanos que não dão “bom dia” antes de um prompt, a inteligência artificial é o assunto do momento em quase todas as áreas do conhecimento. Não seria diferente para a IA no audiovisual.

A questão da autoria

Uma das grandes questões na área é o quanto a IA pode interferir/substituir/participar de criações artísticas. O tema, inclusive, esteve muito em evidência em 2023, quando os membros do sindicato dos roteiristas dos Estados Unidos entraram em greve com reivindicações importantes em relação à IA, como, por exemplo:

  • a proibição de que conteúdos gerados por IA fossem considerados material literário e substituíssem os créditos dos roteiristas;
  • a exigência de que qualquer material criado por IA seja informado como tal;
  • a permissão do uso voluntário de ferramentas de IA por parte dos roteiristas.

A agitação, em suma, girava em torno do temor de que a IA fosse usada para substituir o trabalho dos escritores em vez de como deve, de fato, ser usada: como uma ferramenta.

Desvendando a máquina

A IA, em sua essência, são sistemas que podem simular a inteligência humana (e não a substituir), aprendendo com dados e realizando tarefas que normalmente exigiriam mais raciocínio. A inteligência artificial, por si só, não expressa nada. Ela replica dados, padrões, informações que já existem na internet e entrega um conteúdo reorganizado. Cabe a quem está por trás dela, através de prompts precisos (esses, sim, expressam algo), usar a IA como ferramenta para chegar ao resultado final. Tal qual um pintor, que usa o pincel correto para obter a textura perfeita.

Alfabetizando a IA

Em 2016, o cineasta Oscar Sharp e o pesquisador Ross Goodwin treinaram uma rede neural chamada Benjamin com dezenas de roteiros clássicos de ficção científica. O objetivo era criar um roteiro de curta-metragem escrito inteiramente por inteligência artificial para o festival Sci-Fi London. O resultado foi Sunspring: um filme (hilário) com diálogos desconexos e atmosfera surreal, muito longe de ser um curta de ficção coerente.

Assista na íntegra ao curta Sunspring, escrito por inteligência artificial e produzido em 48 horas – Vídeo: Reprodução YouTube

Nesses quase dez anos desde o experimento, a IA evoluiu exponencialmente. Porém, continua dependendo do Homo sapiens para expressar algo genuíno e criar um storytelling com alguma conexão emocional.

Revolução visual

No campo da IA generativa para a criação de imagens, os avanços foram extremamente expressivos e abriram um novo capítulo para o audiovisual. Não é à toa que estúdios de Hollywood e produtoras independentes têm investido pesado em soluções baseadas em IA para otimizar processos, expandir a criatividade e, é claro, reduzir custos. Ferramentas como Midjourney, DALL·E 3, Adobe Firefly e Stable Diffusion já permitem gerar storyboards, ilustrações conceituais e até cenários, com base em descrições textuais: verdadeiros pincéis digitais.

Esses recursos podem ser muito valiosos na pré-produção, já que permitem testar o clima, a ambientação e o design de personagens de forma rápida e visual. Já durante a produção, vemos aplicações ainda mais ousadas. Um exemplo marcante é a série The Mandalorian, que adotou a tecnologia conhecida como Stagecraft: um set virtual equipado com painéis de LED e sistemas de renderização em tempo real que projetam cenários digitais interativos.

Jon Favreau fala sobre o uso de IA na produção da série The Mandalorian – Vídeo: Reprodução YouTube

A ferramenta permitiu que as gravações ocorressem em ambientes completamente controlados, com liberdade criativa e eficiência, reduzindo significativamente a necessidade de filmagens em locações externas.

IA na pós-produção audiovisual

A IA também entrou com força na pós-produção. Empresas como a NVIDIA têm revolucionado os efeitos visuais ao permitir a geração de imagens e animações com altíssimo grau de realismo. Produções como O Rei Leão (2019) e Mogli – O Menino Lobo (2016) utilizaram esse tipo de recurso para dar vida a animais e cenários com aparência natural. O resultado são cenas que se integram perfeitamente às filmagens reais, ampliando a sensação de imersão do público, como mostra este vídeo.

A Netflix também embarcou nessa e utilizou IA generativa pela primeira vez em sua produção argentina “O Eternauta”. Ela foi usada para criar efeitos visuais complexos, como o colapso de um prédio em Buenos Aires, com 10 vezes mais rapidez que métodos convencionais.

Oportunidade para marcas

E se está no cinema, está na publicidade. A WPP, em parceria com a NVIDIA, está usando IA generativa para criar anúncios 3D de forma rápida, eficiente e com menor custo. Durante a conferência de inovação Siggraph, em 2024, a agência anunciou que está usando ferramentas que permitem transformar descrições simples em cenários 3D hiper-realistas. Basta digitar prompts como “construa uma mesa em uma sala vazia” ou “uma floresta tropical com flores exóticas e raios de sol” e voilá! A inovação permite criar conteúdo visual imersivo e personalizado em escala global, de forma mais ágil e alinhada às diretrizes visuais das marcas. Não à toa, já está sendo testada por marcas como Coca-Cola e Ford.

Já o produtor e diretor PJ Accetturo, que fundou recentemente um uma produtora dedicada a filmes feitos com inteligência artificial, usou o Veo 3, do Google, para criar uma paródia de comerciais de remédio.

Vídeo criado por IA atraiu diversos clientes para produtora – Vídeo: Reprodução YouTube

O resultado, além de um vídeo hilário, foi a atenção das marcas, incluindo a Kalshi — a primeira bolsa financeira americana a investir em mercados de previsão —, que o contratou para criar um comercial igualmente disruptivo para ser exibido nas finais da NBA. Com um custo aproximado de 2 mil dólares, o vídeo teve 18 milhões de impressões em apenas 48 horas. (De quebra, ainda criaram um fake making of igualmente divertido.)

Aqui no Brasil, a Pullse acaba de criar para o Grupo Casas Bahia o comercial Missão Preço Impossível, estrelada por Beatriz Reis. Combinando produção tradicional e inteligência artificial generativa, a campanha conseguiu um visual impactante e reduziu em cerca de 50% os cursos de produção, de acordo com a marca.

Isso é só o começo

As perspectivas futuras da IA no audiovisual são de uma integração cada vez mais profunda. Gabe Newell, fundador da empresa de videogames Valve, prevê que o impacto da IA no audiovisual “será dez vezes maior que o impacto do CGI” e recomenda que diretores façam da IA uma extensão natural do processo criativo, como um parceiro experimental, não um substituto. A tendência é que a IA se torne tão comum quanto as câmeras digitais ou os softwares de edição.

Em suma, a IA generativa é uma força transformadora, e o setor audiovisual está apenas começando a desvendar seu verdadeiro potencial. Daqui para frente, além dos muitos desafios éticos que essa tecnologia suscita — como evidencia a polêmica recente envolvendo uso indevido de IA no Cannes Lions 2025 — está conseguir empregá-la como uma aliada, não como uma inimiga do trabalhador.

Usada com sabedoria e responsabilidade, a IA pode expandir os horizontes da criatividade humana, pavimentando o caminho para uma nova era de narrativas e experiências visuais. O futuro do audiovisual é, sem dúvida, um palco onde humanos e máquinas atuam em conjunto.

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