Gênero documental: a origem de tudo

Gênero documental: a origem de tudo

Uma das grandes forças do audiovisual brasileiro é o gênero documental. Filmes como “Cabra Marcado para Morrer” (1984), “Ilha das Flores” (1989), “Edifício Master” (2002) e “Jogo de Cena” (2007) estão entre os documentários mais celebrados pela crítica. Isso sem falar em “Lixo Extraordinário” (2011), “O Sal da Terra” (2015) e “Democracia em Vertigem” (2020): todos indicados ao Oscar de Melhor Documentário. Mas qualquer espectador mais atento vai perceber que o gênero não está limitado a si próprio. Ele vem influenciando fortemente as produções nacionais desde a chegada do cinema por aqui, mais de 100 anos atrás.

Considera-se que as primeiras gravações cinematográficas no Brasil ocorreram em 19 de junho de 1898. Foi nesse dia que Afonso Segreto filmou a chegada do navio em que estava à Baía de Guanabara. É em decorrência desse fato, inclusive, que no dia 19 de junho se comemora o Dia do Cinema Brasileiro. Assim como essa gravação pioneira, a maioria dos filmes que vieram logo a seguir tinham um teor documental. O curta-metragem “Os Estranguladores” (1908), considerado a primeira película de ficção do Brasil, é baseado em um crime real acontecido no Rio de Janeiro. Já o primeiro longa-metragem brasileiro, “O Crime dos Banhados” (1914), é inspirado em outro crime real, dessa vez ocorrido no Rio Grande do Sul.

Pôster de “O Sal da Terra”, documentário sobre Sebastião Salgado dirigido por Wim Wenders e premiado em Cannes — Imagem: Reprodução Internet

A influência externa

Proprietários de cinema logo começaram a realizar filmes puramente de ficção, conhecidos como filmes “posados”. Entre eles estavam as comédias e os filmes “cantados”, em que atores dublavam a si mesmos por trás da tela. Veio o primeiro estúdio brasileiro — a Cinédia —, os filmes sonoros e, então, a invasão dos filmes de Hollywood, com a narrativa clássica dominante até hoje. Outros estúdios, como a Atlântida e a Vera Cruz, tentaram se inspirar na estética hollywoodiana. Vieram as chanchadas, de grande apelo popular, até que, no final da década de 1950, movimentos influenciados pelos vanguardistas europeus tomaram o cinema brasileiro. Esses movimentos questionavam a linguagem hollywoodiana e, em grande medida, remetiam de volta ao gênero documental.

Cinema Novo: entre a arte e o real

Filmes como “Rio, 40 Graus” (1955), “Vidas Secas” (1963) e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) são ícones do chamado Cinema Novo e têm forte influência do gênero documental, com uma linguagem crua, realista e politizada. Quem nunca ouviu a célebre expressão “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”? Nos anos seguintes, marcados pelo regime militar, vieram à luz filmes do cinema marginal, como “O Bandido da Luz Vermelha” (1968) e “Matou a Família e Foi ao Cinema” (1969). Essas produções rejeitavam as fórmulas tradicionais de narrativa e traziam uma linguagem mais experimental — e, novamente, mais alinhada ao gênero documental do que ao cinema clássico da época.

Morte e ressurreição

Nesse mesmo período, foi criada a Embrafilme, que financiava produções mais alinhadas às exigências do governo militar. Mas, durante o governo Collor, após um período de declínio nos anos 1980, a Embrafilme encerrou as atividades. O cinema nacional só voltou a respirar em meados dos anos 1990, com o advento da Lei do Audiovisual — na chamada Retomada.

Desde então, o audiovisual brasileiro vem ganhando cada vez mais espaço tanto entre o público local quanto internacional. Filmes brasileiros vêm sendo reconhecidos em premiações como o Oscar, Globo de Ouro, Cannes, Berlim, entre diversas outras. Contudo, essa raiz documental manteve-se presente em diversas produções. “Central do Brasil” (1998), “Cidade de Deus” (2002), “Tropa de Elite” (2007) e, mais recentemente, “Ainda Estou Aqui” (2024), são apenas alguns dos títulos altamente reconhecidos que bebem da fonte do gênero documental.

Pôster de “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, vencedor do Oscar® 2025 de Melhor Filme Internacional e do prêmio de Melhor Roteiro no 81º Festival de Veneza — Imagem: Reprodução Internet

A televisão também não fica atrás. Recentemente, o gênero true crime invadiu os streamings, seja em formato de documentário, como “O Caso Evandro” (2021) e “Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez” (2022), ou em formato de ficção, como “A Menina que Matou os Pais” (2022) e “Maníaco do Parque” (2024), apenas para citar algumas das inúmeras produções do gênero.

Narrativas reais como estratégia de marca

É claro que, com todo esse peso do gênero documental no audiovisual como um todo, as marcas não iriam deixar de explorá-lo como ferramenta de comunicação estratégica. O formato permite explorar narrativas mais profundas, construir autoridade em causas e gerar conexão emocional real com o público. Em vez de vender produtos ou serviços diretamente, o foco está no posicionamento, nos valores e na relevância cultural.

A marca estadunidense de roupas e equipamentos para esportes ao ar livre Patagonia é um ótimo exemplo. A empresa é um dos grandes símbolos globais de ativismo empresarial, guiando sua atuação por princípios ambientais e sociais. Em 2019, lançou o documentário “Artifishal“, que denuncia o impacto ambiental da criação artificial de salmões em cativeiro e os efeitos da engenharia genética no ambiente natural, questionando a lógica da industrialização da natureza.

Assista ao documentário “Artifishal”, dirigido por Josh Murphy, na íntegra — Vídeo: Reprodução YouTube

Aqui no Brasil, a Ambev patrocinou o documentário “Em Busca da Cerveja Perfeita” (2019), em que o aclamado diretor Heitor Dhalia percorreu mais de 10 mil km em busca dos segredos da bebida mais popular do planeta. O longa chegou, inclusive, a ser exibido no circuito comercial de cinema.

A Chevrolet também entendeu o poder do gênero documental. Em parceria com a Bring, começou a desenvolver em 2020 a série “Na Estrada com Quem Faz“. A bordo de uma picape Chevrolet S10, apresentadores cruzaram o Brasil para ouvir produtores rurais e compartilhar seu dia a dia com muita sensibilidade. Com versões curtas na TV aberta e episódios completos no digital, a série ficou quatro anos no ar e virou sinônimo de identificação e confiança do público-alvo com a marca, levando a S10 do 4º para o 1º lugar em vendas na categoria logo no primeiro ano de exibição.

Mais do que anúncio: uma herança cultural

É inegável que o gênero documental está no DNA do audiovisual brasileiro. E quando as marcas desenvolvem o formato de forma estratégica, ele se torna mais do que um mero anúncio: funciona como manifestação narrativa, com potencial de virar pauta, movimentar comunidades e deixar um legado cultural.

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