Em uma sociedade que vive grudada no celular, viciada em gratificação imediata e sempre em movimento, não é de se surpreender que a dramaturgia audiovisual esteja se adaptando para que as histórias sejam assistidas de pé. Isso em todos os sentidos: com a tela de pé, de pé do ônibus e por aí vai — e, claro, na palma da mão. Trocadilhos corporais à parte, as novelas verticais, também chamadas de microdramas, são o novo formato de dramaturgia pensado para o celular: episódios curtos, gravados na vertical, consumidos em sequência e otimizados para o feed das redes sociais.
Se antes as grandes tramas brasileiras eram consumidas por um grupo de pessoas sentadas no sofá em frente à TV por horas a fio, hoje elas encontram novos caminhos até os olhos e os corações dos (acelerados) espectadores. O formato, que une a familiaridade da teledramaturgia com a lógica instantânea do digital, está conquistando milhões de visualizações no TikTok, Instagram e YouTube Shorts, além dos aplicativos voltados especificamente para as novelas verticais, como o ReelShort. Mais do que uma moda, o fenômeno sinaliza uma mudança profunda na forma como o público consome histórias.
Da China para o mundo
As novelas verticais nasceram na China, ao redor de 2018, e ganharam força em 2020 (quem aí se lembra da pandemia?), quando plataformas como Douyin (que fora do país é conhecida como… TikTok) e Kuaishou (que por aqui é Kwai) começaram a financiar produções de microficção voltadas exclusivamente para o formato mobile.
Em 2024, a receita desse mercado superou a bilheteria de cinema do país, atingindo cerca de US$ 6,9 bilhões. Hoje, a China já ultrapassa 10 mil títulos verticais por ano, com episódios que raramente passam de 90 segundos. De lá, o formato se espalhou pelo mundo. A estrutura curta, com ganchos e cortes rápidos, encontrou terreno fértil no Ocidente, especialmente nas redes sociais.
Em 2025, a plataforma ReelShort superou 370 milhões de downloads no mundo, com um aumento de impressionantes 992% entre 2023 e 2024.
O boom brasileiro: de influenciadores a emissoras
Em 2024, o Brasil começou a se aventurar por esse universo das novelas verticais. Primeiro, com influenciadores que criaram narrativas curtas e seriadas, viralizando tramas simples rapidamente.
O influenciador Luis Mariz no primeiro episódio da novela vertical “Em busca do amor” – Vídeo: Reprodução Instagram
Depois, produtoras e emissoras começaram a apostar no formato de forma estruturada. “Entrar no mercado de microdramas não é uma opção, é uma necessidade para toda empresa do mercado audiovisual”, afirma Ronaldo Bettini Junior, diretor de novos negócios da A2 Filmes. “O movimento de sentar-se na sala em frente à TV, acessar uma plataforma e escolher um filme tornou-se um evento, não é mais uma rotina. Negociar noventa minutos ou duas horas da atenção das pessoas está cada vez mais difícil”, reflete.
Por outro lado, as pessoas estão o tempo todo conectadas, consumindo conteúdo. O que as produtoras acabam fazendo, portanto, é fragmentar esse conteúdo. “Você negocia não mais noventa minutos da vida dela, mas sim dois minutos. É bem possível que ao longo do dia ela tenha consumido os noventa minutos em episódios curtos, ou seja, tempo equivalente a um filme, mas que ela não me daria no final do dia consumindo um longa no streaming“, continua Ronaldo. Ele produziu o microdrama “Com licença, eu sou o big boss“, que, em menos de duas semanas, bateu 12 milhões de visualizações no ReelShort.
Trailer de “Com licença, eu sou o big boss”, microdrama filmado no Rio de Janeiro que é sucesso no ReelShort – Vídeo: Reprodução ReelShort
Até a Rede Globo, a rainha da teledramaturgia, se rendeu ao formato. Já estão em produção duas novelas verticais próprias, com 50 episódios cada: “Tudo por uma segunda chance” e “Cinderela e o segredo do pobre milionário”. A primeira, estrelada por Jade Picon, será lançada nas redes sociais, terá cerca de três minutos por episódio e vai dialogar com “Dona de Mim”, a atual novela das sete, em que personagens assistirão à trama no celular. (Olha aí uma ótima estratégia cross media!) A segunda será protagonizada pelo cantor Gustavo Mioto e marcará a estreia do formato no Globoplay, com episódios ainda mais curtos: cerca de dois minutos.
A questão do custo
À primeira vista, pode-se ter a impressão de que os microdramas são mais baratos de produzir, talvez por associarmos esse formato às produções voltadas ao digital, que costumam exigir menos investimentos do que as obras pensadas para a TV ou para o cinema. Mas isso não é necessariamente verdade. A questão não é o custo de produção, mas o retorno do investimento.
Ronaldo explica: “O custo do microdrama é muito mais coerente. É muito caro investir milhões em um filme sem garantia de exibição, sem um caminho claro e garantido de distribuição. São muito mais títulos produzidos do que semanas no calendário, não existe espaço para todas as produções entregues por ano.”
É aí que as telinhas do celulares brilham — literalmente. “Qualquer conteúdo fragmentado e distribuído em plataformas verticais terá muito mais chance de recuperar o investimento”, completa Ronaldo.
Novelas verticais como estratégia de marca
Os microdramas se encaixam perfeitamente na economia da atenção, já que são pensados para um consumo rápido, com recompensa imediata e emoção condensada. Além disso, conseguem ir ao ar poucos meses após o início da produção — muito menos do que os dois anos e meio que, em média, costumam separar o início da produção de um filme até sua estreia nos cinemas.
Com tantas vantagens, o formato rapidamente despertou o interesse das marcas (quem diria?). De cara, os microdramas se tornaram uma forma de advertainment, unindo entretenimento e conteúdo de marca maneira orgânica.
Nos EUA, a empresa Bilt Rewards lançou a microficção “Roomies“, que acompanha as desventuras de uma jovem que recém-chegou a Nova York e seus roommates. A estratégia de comunicação por conteúdo nem sequer menciona a marca nos episódios, lançados semanalmente no Instagram, mas se relaciona diretamente com seu público-alvo.
No Brasil, algumas empresas já transformam campanhas em novelas verticais que se passam dentro do universo da marca. É o caso da Swile, empresa de benefícios corporativos, que lançou a novela vertical “A firma”. O microdrama de oito episódios, estrelado por atrizes gêmeas, retrata dilemas de carreira, liderança e poder, sempre com humor e referências à vida real de escritórios e startups.
Trailer de “A firma”, anunciada pela Swile como a primeira novela corporativa do Brasil – Vídeo: Youtube Shorts
Nem tudo são flores
Apesar da popularidade, as novelas verticais impõem importantes desafios, entre eles, o de entender o modelo de um negócio que está começando. Ronaldo avalia: “Temos as plataformas do formato, temos grandes portais querendo abrir espaço para a distribuição, temos o YouTube pensando em entregas verticais… Por se tratar de uma mudança significativa no negócio, o grande desafio é encontrar um caminho que faça sentido para o consumidor, o produtor e o investidor.”
Há, ainda, os desafios criativos. Como desenvolver personagens profundos e tramas envolventes com episódios de menos de um minuto? Roteiristas precisam condensar emoção e conflito em microclímaxes sucessivos, sem perder coerência. O ritmo frenético pode gerar desgaste, e a busca por viralidade pode substituir a consistência narrativa.
Ainda assim, o formato tem incentivado novas técnicas de escrita e direção, que valorizam gestos, olhares e diálogos curtos, quase como vinhetas dramáticas. Não será a primeira nem a última vez que precisaremos adaptar a arte do storytelling para novos formatos.
O futuro: entre o entretenimento e o algoritmo
As novelas verticais mostram um movimento claro no entretenimento mobile-first: do conteúdo espontâneo criado em casa de forma (quase) amadora para uma narrativa profissional pensada com estética e ritmo televisivos, mas adaptados ao feed.
O formato deve se consolidar como uma nova camada do audiovisual brasileiro — nem substituto da TV, nem concorrente direto do streaming, mas uma ponte entre os dois mundos. O número de plataformas dedicadas à microficção deve crescer, e é possível que as tramas ganhem modelos híbridos, começando nas redes sociais e ganhando versões longas no streaming, por exemplo.
“É um caminho sem volta. Não é passageiro, não é moda: são simplesmente pessoas consumindo conteúdo naturalmente no local em que gastam a maior parte do seu tempo. É o audiovisual entrando na vida das pessoas sem que elas percebam”, conclui Ronaldo.
Cabe agora à indústria audiovisual pensar em narrativas multiplataforma, que consigam fisgar o espectador pelos poucos segundos que ainda somos capazes de reter a atenção. E cabe às marcas aprender a usar o formato a seu favor, aproveitando mais essa forma de se aproximar de seu público — e, de preferência, também entretê-lo.